sexta-feira, 28 de maio de 2010

SE EU FOSSE ATEU


Se eu fosse ateu, não me vangloriaria disto,
Não contaria vantagens,
Não hastearia uma bandeira:
Como quem entende que a ausência de Alguém maior que eu promove a maior de todas as solidões.

Se eu fosse ateu, não riria muito,
Não pensaria muito no futuro,
Não acreditaria mais em absolutos:
Como quem entende que tudo é sem propósito e caminha para o nada.

Se eu fosse ateu, teria cuidado ao contemplar o mar,
Teria cuidado ao contemplar o céu,
Por evocarem a idéia de infinitude:
Como que entende que o grito da alma por continuidade é a porta de entrada para o desespero.

Se eu fosse ateu, me confundiria quando sentisse,
Me confundiria quando amasse,
Ficaria perplexo ante as palpitações do coração:
Como quem entende que aquilo que é intangível não é suficientemente explicado pela mecânica fria da máquina orgânica.

Se eu fosse ateu, daria mais valor à arte de duvidar,
Duvidaria mais das minhas certezas,
Questionaria mais as minhas afirmações:
Como quem entende que alguém destinado ao nada, cerceado pelo absurdo da falta de sentido, não tem uma base adequada para fundar suas certezas.

1 comentários:

Se fosses ateu perceberias que a ausência de algo superior, seja um suposto deus ou uma suposta colecção de valores universais, não tem nada a ver com desespero ou falta de sentido, mas sim liberdade e criatividade de criar os nossos. Não há nada mais humano e humanista do que ser activamente ateu, e usar este facto impossível de negar que é o estarmos sozinhos num universo absurdo e silencioso, como ferramenta e motivação para sermos melhores uns para os outros, para construirmos colectivamente uma evolução melhor, no fundo, criar esse tal significado que sentes falta no mundo dos ateus. Estamos sozinhos em relação a algo mais, mas sem dúvida não estamos sozinhos: temo-nos a nós próprios e a tudo o que existe na realidade. Porque a verdade, é que essa mecânica orgânica a que chamas fria é tudo menos fria, nela está contida todo o calor da vida e do que é, o devir que tudo premeia e que é imanente de tudo o que existe, o desejo, a força de viver, a escandalosa maravilha que é ser. Se fosses ateu talvez pudesses começar a apreciar esta enorme poesia do que existe, sem precisar de algo transcendente, algo que não é real nem vive neste mundo. Se fosses ateu talvez pudesses também ter uma visão mais positiva do que é o nada, pois ele não é apenas o vazio a que voltamos assim que morremos (e mesmo nesse momento não é um nada, pois deixamos no mundo a marca que queremos), mas ele é também o campo de possibilidades do não-ser, aquilo que, fazendo o uso da nossa inescapável liberdade, podemos almejar e esforçarmo-nos para ser. Podemos ser, no fundo, uma ode à mudança, à nossa potencialidade de contribuir positivamente para o devir, o nosso, o dos outros, o da humanidade, o do universo. Se fosses ateu terias pelo menos a vantagem de substituir religião por filosofia, e talvez leres Camus, Nietzsche, Sartre, Espinoza, e por aí fora, e assim te pacificares com o absurdo e ausência de sentido pré-dado. O sentido existe, somos nós que o criámos. Mas para isso é preciso ser ateu :)

Obrigado pela partilha e abraços, boas continuações poéticas!

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